Correio Brasília

Entrevista com a escritora Cristina Judar

08/06/2016 20:44

Entrevista com a escritora Cristina Judar

Por Camila Passatuto

 

Materializo minha entrevistada na cadeira ao lado. Não posso trocar olhares ainda...Sinto que repara na bagunça da bancada, nos óculos aos montes, relógios, canetas coloridas, a pilha de livros, mesa digitalizadora, um dicionário velho e o manual de minigramática do Cegalla, tudo compõe erroneamente a simetria de nosso cenário contemporâneo decadente.

 

Não sei se devo oferecer um mate, acho que ela combina perfeitamente com um regalo largo de conhaque. Minha garganta fica seca com a ilustre presença no quarto, faze o quê?.

 

Sinto vontade de estrangular o silêncio e coloco Baden Powell para tocar.

 

Nunca fiz isso antes, é coisa de gente aluada. Mas encaro Cristina. Na dança de dedos sobre a calça brim, ditando ao momento uma impaciência fértil, ela me autoriza às descabeçadas perguntas.

 

Entrevista com a escritora Cristina Judar

 

-       Cristina Judar. Para começar: Estruturas impecáveis ou estratégias emocionais avassaladoras, o que mais você admira e procura na leitura e criação?

 

Se a estrutura não for pensada como fórmula matemática, como 1 + 1 = 2, mas, sim, no sentido de encadeamento de palavras e ideias (sem deixar de lado o aspecto sonoro, que também é muito importante), gosto muito, é algo que trabalho pra alcançar. Quanto a estratégias emocionais, não sei, prefiro o fator surpresa, mesmo que seja um balde de água fria na cabeça do leitor. Gosto de quebrar as expectativas, seja com a linguagem, seja com o curso da história contada. A vida nunca é previsível e não tenho a intenção de escrever histórias previsíveis.

 

-       Eu fui uma criança viciada em livros didáticos. Tinha uma coleção enorme, livros das décadas de 70, 80 e 90. A gente sabe como é o lance dos livros didáticos, um texto (trecho) de referência e tome questões de interpretação de texto, gramática e tal. O que você acha dessa estrutura de aprendizado e como vê a literatura sendo apenas apoio ralo para o estudo da língua?

Minha relação com livros didáticos foi a mesma de quase toda criança em idade escolar quando submetida a esse tipo de material. Me lembro vagamente, mas eles certamente não eram a pior parte dos estudos pra mim, que já nasci 'pessoa de humanas' (risos). A coleção Vagalume, pra quem foi criança / adolescente nos anos 80 foi bem importante por trazer essa fusão entre o livro-didático e a literatura propriamente dita. Acredito ser esse o melhor formato, que conquista os novos leitores pelo prazer. O resto, como interpretação, entendimento da obra, envolvimento, serão consequência. Eu não sei como as coisas são hoje, se esse boom da literatura juvenil e o sucesso de tantos livros para adolescentes favorece o mesmo tipo de experiência, eu torço muito para que sim. Mas, como você citou, se a literatura for apenas usada como um apoio 'ralo' para os estudos é, de fato, lamentável.

 

-       Você acha que daqui uns 50 anos, você e seus contemporâneos terão espaço dentro das escolas?

Arrisco dizer que não. Talvez para um público adulto, interessado em conhecer os sucessos e fracassos da literatura de 50 anos atrás. Basta saber em qual categoria eu e meus contemporâneos estaremos. Já adianto que não faço a mínima ideia.

 

-       Roteiros para uma vida curta, seu livro com menção honrosa no Prêmio Sesc de Literatura 2014, tem algo que gosto muito. Ele traz mulheres reais, urbanas, interessantíssimas. Eu passaria horas de bate papo com todas elas. Além disso, em algumas narrativas há a sutileza da voz lésbica no texto. É raro ter uma personagem homossexual que não tenha como contexto a própria sexualidade. Naturalizar a homossexualidade feminina na literatura brasileira é  um motivo bom para seguir? E a representatividade bem posta, você sente falta disso ou tem gente produzindo o não óbvio por aí?

Bem, antes de mais nada, é preciso naturalizar a essência feminina na literatura de forma geral. Alguns trabalhos, principalmente os divulgados nas redes sociais, apresentam as coisas de maneira um pouco, digamos, forçada. É como se tentassem encaixar a essência feminina em uma forma fixa. Acredito que boa parte do que acontece se deva à falta de prática mesmo, ou por idealização do que seria a 'voz feminina', ou ainda porque muitas mulheres reproduzem a maneira masculina de descrever o corpo, a alma, a existência, o pensamento da mulher. É muita escritora falando sobre o próprio corpo, enfatizando zonas do corpo. Não falo aqui sobre o melhor da literatura erótica, que é dificílima de escrever - e hoje temos grandes autoras, que eu admiro.
Mas, em certos casos, é como se não fosse possível ser escritora, poeta e mulher sem ter que lembrar o leitor, a cada três segundos, sobre detalhes da anatomia feminina. Pode notar que é bem mais raro encontrar escritores que façam menção ao próprio corpo em suas narrativas. É como se a mulher precisasse se fetichizar para se reconhecer / ser reconhecida como mulher, se mostrar como mulher. Só que mulheres não se resumem a um ser erógeno-lânguido sobre lençóis vermelhos de cetim o tempo todo. Arrisco dizer que essa é uma parcela mínima de nossas vidas (risos). Mulheres pensam e fazem muitas coisas - que sim, podem ser interessantes literariamente / poeticamente / socialmente / politicamente. Se for pra escrever sobre sexo, corpo, desejo, ótimo, mas que isso não seja um aprisionamento ou obrigatoriedade, mas opção, considerando-se milhares de outras opções, o que, ao menos pra mim, significa ser livre como escritora. Agora, em relação ao lesbianismo na literatura, creio que deva ser abordado e incluído da mesma forma: com naturalidade, sem forçar a barra e sem apelar para estereótipos sexistas. Que faça parte das narrativas, com verdade, legitimidade, sem o apelo fácil dos clichês. Encontra-se de tudo por aí, alguns livros já me afastam pela capa, mas torçamos para que as coisas melhorem. Tento fazer a minha parte.

 

-        O que faria você perder a missa das seis?

Vou te contar o que me faria ir a uma missa das seis: (1) vitrais multicoloridos atravessados por raios solares; (2) o som de um órgão de tubo, com, no mínimo, 30 tubos; (3) o padre rezando a liturgia em uma língua que não entendo.

 

-       Cris, viaja aqui comigo. Imagina que daqui 97 anos eu e você nos tornamos grandes escritoras brasileiras e uma garota de 13 anos está realizando um pesquisa sobre a gente e encontra essa nossa conversa. Diz aí alguma coisa para essa nossa leitora do ano de 2113, que ama literatura e curti muito escrever.

-        

Hey, garota, não sei como é sua vida agora, mas olha, eu espero que a nossa língua portuguesa não tenha sido ainda mais contraída e que hoje vocês não se comuniquem via grunhidos.

 

-       Cristina, faça uma pergunta para esta que vos enche com perguntas licenciosas.

Pergunta Cristina: Você consegue estabelecer limites claros entre prosa e poesia nos seus textos? Ou ambas, unidas, constituem uma terceira forma de contar a vida, uma coisa só? Aliás, para que servem as classificações mesmo?

 

Resposta Camila: Realmente eu tenho uma dificuldade enorme em classificar minha escrita nos últimos tempos. Hoje ela, falo sobre a suposta prosa que venho desenhando, tem uma herança forte do que fiz nos últimos 10 anos que é poesia. Minha mão pesa no poema, sempre achei que morreria e nunca escreveria nada além de poemas, mas minha poesia mudou durante esses anos, mudou tanto que exigiu um novo formato. Aí entra a prosa na jogada, eu não sei fazer prosa, eu não sei escrever um conto. Tem leitor que chega e diz: “Putz, adorei esse conto”. Aí vem outro e fala sobre o mesmo texto: “Seu poema é muito bom”. Eu não sei definir nada, acho que sou muito crua, só sei escrever.

Mas se vamos falar de limites entre prosa e poesia, no meu caso, eu posso dizer que a poesia quis vestir o manto da prosa.

Eu realmente não sei, Cris. Só não suporto ver que estou no limite do que já foi feito, escrito e inventado e ficar no café com leite, no entanto não sento e penso: preciso criar algo inovador. As coisas acontecem naturalmente… e elas estão em curso.

Quero é o cru mesmo, essa coisa sem nome, e quando a “prosa” começar a cozinhar eu, sem perceber, mato outro estilo com uma mordida no pescoço e crio um embolo novo, ou não.

 

-       Como é tua produção? Intensa por um tempo e depois míngua, ou estável?

É absolutamente instável, como a minha natureza. Não entendo como há pessoas que conseguem escrever todos os dias, de tal hora a tal hora, religiosamente. Isso deve ser ótimo, eu de fato as invejo, mas jamais conseguiria chegar a esse nível de disciplina. Quando estou escrevendo um livro, tento produzir com certa frequência para não perder o ritmo, o envolvimento, mas tudo acontece de forma orgânica, sem muitas regras.

 

-       Para terminar: O que mais dói?

A morte.

 

Entrevista encerrada.

 

Nesse momento, sem eu perceber, Cristina se ilumina como abajur tímido e logo me sorri um espasmo fluorescente. Levanto no susto.

 

Tento o toque, mas ela é escape, como toda grande mulher. Tropeço na ânsia de estabelecer contato com sua atmosfera... Recito e reintegro os propósitos.

 

Ela se foi. Deve estar de ponta-cabeça em seu sofá a observar um devaneio enovelado.

 

Eu e o leitor ficamos aqui, com o frescor de gengibre entre os dentes, com Cristina Judar decupada em nosso suco de maçã vespertino.

 

 

 

Sobre a escritora entrevistada:

Cristina Judar é natural de São Paulo. Jornalista e escritora, é autora  das HQs Lina (2009) e Vermelho, Vivo (2011). Autora de Roteiros para uma vida curta (Editora Reformatório), seu primeiro volume de contos, foi menção honrosa no Prêmio Sesc de Literatura 2014.

Atualmente a escritora se dedica à finalização de seu primeiro romance Oito do Sete, contemplado pelo PROAC de Literatura, em 2014.